Nesta segunda-feira, 1 de fevereiro, completou 15 anos do falecimento do grande mestre Carlson Gracie. Como não poderia deixar de ser minha recordação do baú desta semana é sobre uma reportagem que fiz com o mestre há exatos 22 anos conhecendo de perto uma de suas grandes paixões, a rinha de galos.
Antes que me cancelem ou iniciem um linchamento virtual por apoiar rinhas, peço que me deixem ao menos contextualizar. Antes de ser jornalista, sou formado em biologia. Acho até desnecessário dizer meu absoluto repúdio pela atividade, mas como jornalista eu simplesmente não tinha como negar aquele convite feito por Carlson após um agradável almoço numa tarde de sábado junto com os amigos Paquetá e Rinaldo Santos. Algo me dizia que adentrando no mundo daquela grande paixão do maior formador de campeões da história do Jiu-Jitsu eu conseguiria não só entender melhor a filosofia Gracie como também descobrir a origem de tantas gírias e curiosidades que já estavam incorporadas ao mundo das lutas.
Quando entramos naquela luxuosa casa localizada na Barra da Tijuca, a impressão que tive é de estar entrando num campeonato de Jiu-Jitsu no Tijuca Tênis Clube. Ao redor de uma enorme arena quase 30 pessoas gritavam ensandecidas enquanto dois galos se engalfinhavam num circulo acarpetado. “Vai que é Mutuca; Este frango d´água, corrido”. Estes e outros termos correntes no vocabulário do mundo do Jiu-Jitsu me fizeram começar a entender de onde Carlson havia tirado sua fixação em valorizar mais seus atletas de brio. “O galo é o bicho mais valente do reino animal. E o único animal que briga por instinto e só para quando perde os sentidos, a não ser quando é mutuca. Eu tenho pavor de galo mutuca, imagina homem”.
O fato é que Carlson parecia uma criança na Disneylândia e fazia questão de me explicar cada detalhe. Achei curioso o fato de os galos também serem divididos em categorias de tamanho e peso: leve (61cm – 2600g), médios (65cm – 2900g) e pesados (74cm – 3600 g) e antes de entrarem no ringue também passarem por um processo de preparação onde eram colocadas biqueiras de metal e esporas de plástico (2,5cm). Segundo me explicou Carlson, as lutas eram disputadas em 3 rounds de 15 minutos por 5 de descanso. Se o galo deitasse ou parasse de lutar era vencido por tuco (nocaute em “galês”). O combate também podia terminar empatado.
Carlson não foi o primeiro Gracie a se inspirar na valentia dos galos, a relação da família com as rinhas começou com seu pai, Carlos, que foi um dos introdutores da prática no Rio. “A primeira rinha de galos do Rio se chamava academia, pois foi aberta nos fundos da primeira academia Gracie (Marques de Abrantes 117, no flamengo) assim que meu pai chegou de Belém em 1925”, me revelou Carlson entre um combate e outro.
Segundo Carlson, seu pai tinha fama de ser tão bom treinador de galos que havia uma lenda que dizia que ele uma vez treinou uma galinha que ficou tão boa brigadora, que chegou a vencer vários galos. Verdade ou não, o fato é que, posteriormente, pelo menos nos ringues de Vale-Tudo, seu irmão Hélio e seu filho Carlson provaram estar muito bem treinados.
Outra curiosidade que descobri nesta reportagem foi que Carlson levou vários galistas para o mundo do Jiu-Jitsu. Um bom exemplo é o faixa preta Alberto dos Santos. Filho de Antonio Apaga-Vela dos Santos, uma espécie de Greg Jackson dos galos de Carlson. “Ele treinava meus galos e eu ensinava Jiu-Jitsu para o Albertinho”. A troca foi justa. Albertinho virou faixa preta, campeão brasileiro e até hoje vive dando aulas nos Estados Unidos. Apaga-Vela pagou na mesma moeda e fez vários campeões para o Gracie. “Fizemos muitos campeões como o Bulova, Alcipão, Piolho do Cão, Belzebu, Swástica e galo-tiro”, contou Carlson a época, enumerando seus prediletos.
APAGA-VELA, CARLSON E 2 GALOS NO AVIÃO
Esta semana publicamos no canal do PVT no Youtube um vídeo onde Allan Góes relembrou uma história onde Carlson tentou levar dois galos para Los Angeles como bagagem de mão. Pois neste dia da reportagem Carlson já havia me contado uma história parecida: “Eu e Apaga-Vela ficamos sabendo da inauguração de um Clube de Galos em Brasilia e embarcamos com dois galos de ônibus. Um galo acabou não brigando e outro empatou e nós ganhamos um bom dinheiro lá, tanto que resolvi voltar de avião e pagar a passagem do Apaga-Vela com galo e tudo. O problema é que pegamos uma escala internacional de um vôo que vinha de Nova York com os dois galos camuflados na bagagem de mão. O que tinha brigado estava quietinho mas o outro queria cantar a qualquer custo. Tinha uma garotinha americana na nosso frente que acabou desconfiando e quase chamou a aeromoça. Mas no final acabou dando tudo certo . O pior foi explicar pro Apaga-Vela, que nunca tinha voado de avião, como nós tínhamos demorado 18 horas pra ir e só duas pra voltar. Ele não se convenceu que o avião voava de jeito nenhum”
CHUTE BOXE E AS RINHAS
A ligação entre as brigas de galo e o mundo da luta não acabam aí. Quando começaram a lutar Vale-Tudo, os alunos de Rudimar Fedrigo (Chute Boxe) recorreram a um amigo de rinhas e aluno de Carlson, que morava no Paraná. Antônio Carlos (Nico) teve participação fundamental na adaptação dos especialistas de Muay Thai a luta de chão.
GALINHA BRASILEIRA + GALO JAPONÊS
Nesta reportagem, Carlson trouxe a tona uma outra coincidência curiosa entre homens e galos. Segundo o Gracie, os galos japoneses eram os mais técnicos, mas perdiam para os brasileiros na valentia. “O galo japonês puro é mutuca, se não ganha rápido, corre. A melhor cruza que tem é o galo japonês com a galinha brasileira. A galinha brasileira segura a mutucagem do galo japonês, fazendo a melhor raça de galo que existe”, me contou o expert na época.
A LENDA DO SALVA-GALO
Quem foi aluno de Carlson Gracie tinha até medo de falar em machucados e contusões próximo ao mestre. lenda trazida por Carlson para o meio do Jiu-Jitsu é a utilização dos “salva-galos” (antissépticos usados para curar os machucados dos galos após as rinhas) em seus lutadores. “O Salva-galo é uma mistura de plantas que ninguém sabe como é feita. Ele cura tudo, é uma formula milagrosa. Sempre que um lutador meu se machuca, coloco o salva-galo e é tiro e queda”, me garantiu na oportunidade Carlson Gracie contando que uma vez a fórmula milagrosa salvou Carlão Barreto após uma luta sangrenta no IVC. “Ele abriu um corte enorme no supercílio e levou oito pontos, eu botei o salva-galo e no dia seguinte tinha cicatrizado o corte”.
A BRONCA E A LIÇÃO
Lembro que quando saímos do evento tomei uma bronca quando revelei que continuava odiando rinhas. “Vai me dizer que ficou com nojinho. Que isso rapaz ! a briga da natureza do animal. Um frango de corte vive apenas 72 dias até ser abatido. Um galo de briga vive de 15 meses a 5 anos, depois ele se aposenta e fica só para cruzamento. Além de tudo gera empregos”, tentou me convencer o Poderoso, que odiava ser contrariado.
Apesar de todos os argumentos, Carlson Gracie não me convenceu, mas certamente me ajudou muito a entender melhor um princípio básico do jornalismo: nunca “feche a porta” para uma reportagem por conta de alguma idéia pré-concebida. Como biólogo de formação nunca me imaginei passando próximo a uma rinha de galos, mas como jornalista sai daquela experiência fascinado e até hoje agradeço ao Carlson por ter me ajudado a entender melhor o mundo Gracie e a profissão que escolhi.
Dicionário do galista
Mutuca – frouxo
Corrido – galo que foge da luta
Mangalhado – quando o galo abaixa a cabeça (indicação de que vai perder)
Frango Dágua – galo ruim (fácil de ser vencido)
Cantor de galinha – quando está com medo canta como uma galinha
Escoveiro – Galo sparring, que serve para treinar os galos bons
Escorva – Galo bom
Galo tiro – craque das rinhas
Que cruza – Quando via uma mulher grande e forte
tuco – Nocaute
Eriçar o galo – Aproximar os galos para deixá-los nervosos e prontos para a briga
*Texto e fotos: Marcelo Alonso