O dia em que Wallid finalizou Royce em Copacabana e desafiou Rickson

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Num momento onde o Jiu-Jitsu era associado a pitboys pela grande mídia, Zé Moraes usou o evento para combater este marketing negativo

Além da luta entre o filho de Hélio Gracie e o aluno de Carlson Gracie, outros 24 atletas participaram do 2º Oscar do Jiu-Jitsu idealizado pelo Secretário de Esportes do Rio, José Moraes. O evento teve como palco a maior arena do festival Olímpico de verão na praia de Copacabana no dia 17 de dezembro de 1998. Foram sete combates na faixa preta, três na marrom, e dois na roxa.

Num momento onde o Jiu-Jitsu era associado a pitboys pela grande mídia, Zé Moraes usou o evento para combater este marketing negativo

Texto e reportagem Marcelo Alonso e Luciano Andrade

Fotos Marcelo Alonso

Antes de Carlos Gracie Jr. fundar a Confederação brasileira de Jiu-Jitsu (CBJJ) em 1994, O Jiu-Jitsu competitivo vivia graças a obstinação de alguns promotores como Silvio Pereira (presidente da LINJJI), Mauro Talman (Copa Company), Claudio França e Marcus Vinicius (Atlântico Sul) e Ricielli Santos, que além de trazer diversos patrocinadores do surf para o Jiu-Jitsu (Copa Lightining Bolt, Copa Cantão), passou a criar desafios entre academias que tinham como main event, lutas de 1 hora (Marcelo Behring Vs Cassio Cardoso e Renzo Vs Wallid).

E foi exatamente a partir do sucesso de público destes desafios nos anos 80 e 90, que o Secretário de Esportes do Rio, José Moraes, discípulo de Hélio Gracie, decidiu trazer a Arte-Suave para o Festival Olímpico de Verão na praia de Copacabana em dezembro de 1998. O evento, promovido em duas arenas gigantes e aberto gratuitamente ao público, tinha como foco principal promover esportes olímpicos.

Para encaixar o Jiu-Jitsu, tão demonizado pela mídia na época, Moraes teve a ideia de fazer uma campanha contra a violência, onde todos os atletas tinham que entrar vestindo uma camisa (Esporte não é violência, acredite !) saudando o público antes de suas lutas. Mas curiosamente, mais difícil que conseguir inserir o Jiu-Jitsu entre esportes olímpicos naquele momento, foi fechar a luta principal entre Royce e Wallid. Uma verdadeira novela.

 

WALLID SEM TREINOS, APÓS RACHA NA CARLSON  

 

Tudo começou com uma proposta de Rorion Gracie ao secretário de esportes do Rio. O empresário queria promover a volta de seu irmão Royce ao Brasil, fazendo uma luta de Jiu-Jitsu sem tempo e sem pontos contra qualquer campeão mundial de Jiu-Jitsu ou Vale-Tudo, dentro das regras da Arte Suave. Desta forma, Rorion, com sua indiscutível visão comercial, pretendia matar vários coelhos com uma cajadada só: voltaria a estampar o nome de Royce na mídia, após quase 4 anos de afastamento; engordaria sua conta bancária em US$ 60 mil; comprovaria a teoria de que sem limite de tempo os Gracie são imbatíveis; iniciaria o treinamento de Royce para a tão falada luta com Mark Kerr no Pride VI e, de quebra, lançaria sua grife de roupas (Gracie Gear) no Brasil. O primeiro adversário cogitado foi Vítor Belfort, mas os compromissos com o Ultimate logo o tiraram do páreo. Foi aí que começou a polêmica.

Com a saída de Vítor, Zé Mário, que acabara de finalizar Royler no brasileiro de Jiu-Jitsu, passou a ser o nome mais cotado, seguido por Amaury Bitetti, Murilo Bustamante e Wallid. Mas enquanto os três se uniam fazendo lobby junto a Zé Moraes para melhorar a bolsa (US$ 10mil) e tentar impôr algumas regras para a luta, Wallid, o último da lista, se antecipava, aceitando a proposta inicial e ficando com a vaga. A atitude de Ismail foi repudiada pelos companheiros, que passaram a lhe negar treinos. Frente a tal situação, o manauara, que há muito não botava um quimono, acabou treinando mesmo é com os alunos menos graduados da academia. “O Wallid está com 70% de seu potencial. Mesmo assim confio na sua vitória”, me declarou Carlson um dia antes do evento.

 

VETO DE RORION PREJUDICOU ROYCE 

 

Do lado de Royce o problema foi em família. Royler Gracie, que estava lançando a marca Gracie Brothers em sociedade com seu irmão Relson, tentou, junto a Zé Moraes, entrar no evento, fazendo uma das preliminares. O secretário de esportes até que gostou da ideia, mas a pedido de Rorion, barrou Royler. “Só pode ter um Gracie neste evento”, teria dito o filho mais velho de Hélio Gracie. Afinal de contas, se Rorion estava usando o evento para lançar sua marca no Brasil, a presença de outra grife Gracie não seria bem vinda. A decisão do criador do Ultimate levou a um grande desentendimento em família e quem pagou o pato foi Royce, que ao chegar no Brasil acabou não podendo treinar na academia de Royler, onde certamente estão alguns dos maiores nomes do Jiu-Jitsu na atualidade. O tricampeão do Ultimate acabou indo para Itaipava treinar com seu pai Hélio Gracie e seus irmãos Rorion e Rolker. 

Como a luta não tinha ponto nem tempo, a expectativa era que avançasse pela madrugada

A LUTA 

 

Depois de toda esta novela, ficou claro que Royce e Wallid não chegaram na arena em suas melhores condições físicas e técnicas. E a julgar pela conhecida raça dos protagonistas e por outras lutas de uma hora que haviam acontecido em desafios anteriores (como Marcelo Behring e Cassio Cardoso e Renzo x Wallid), a expectativa era de uma luta muito longa, podendo inclusive adentrar aquela madrugada  de 17 de dezembro na Arena Olímpica de Copacabana. Tanto que o próprio Wallid declarou para na conferência de imprensa na noite anterior. “Aconselho a levarem um livro para ler na arquibancada”, disse o amazonense, que nunca foi conhecido por ser um atleta finalizador, mas sim grande pontuador. Já Royce, nunca teve destaque nas competições de kimono antes de ir para o EUA há mais de 10 anos. Além de estar desatualizado iria esbarrar na raça e determinação do amazonense. Mas algumas opiniões começaram a mudar logo que os lutadores entraram na arena. Wallid era a imagem da confiança e da certeza da vitória. Já Royce, parecia abatido, desconcentrado, nada a ver com o lutador determinado de tantos Ultimates. 

 

“AGORA SÓ FALTA O RICKSON”

 

O Gracie começa melhor, dá uma queda em Wallid e encaixa um bonito crucifixo, defendido na base da raça pelo manauara. Na sequência, o atleta da Carlson consegue botar Royce para baixo e começa a atacar sua guarda. Passam-se alguns instantes e Wallid consegue forçar seu adversário a virar de quatro. Royce estranhamente não demonstra ímpeto para se defender quando Wallid começa a entrar com a mão na gola buscando o relógio. Era o fim. Pouco depois o Gracie apagava frente a um público de aproximadamente 7 mil pessoas, ainda ficando um bom tempo desacordado pois, ao desfalecer, continuara na mesma posição em que apagara: de quatro. O árbitro Hélio Vígio só percebeu o que estava acontecendo quando Rorion invadiu o tatame preocupado com o estado de seu irmão. A surpresa da derrota por finalização do homem que levou a eficiência do Jiu-Jitsu ao mundo mereceu capa nos principais veículos do mundo: Da Black Belt nos EUA a Kakutougi Tsushin que estampou na capa uma foto impactante de Royce apagado registrada pelo fotografo brasileiro, Alexandre Vidal. No Brasil, as revistas Gracie e Tatame também colocaram Wallid em suas capas.  

“Qualquer um que ganhasse dava no mesmo, é tudo Gracie” contemporizou Carlson ao microfone

12 CLÁSSICOS 

 

Antes da luta principal aconteceram alguns desafios entre destaques das principais agremiações do Jiu-Jitsu brasileiro. Os vencedores ganhavam 1000 reais e uma passagem para o Panamericano de 1999

 

António “Nino” Shembri (Gracie Barra) x Pedro Duarte (Carlson Gracie)

 

No melhor embate deste Il Oscar do Jiu-Jitsu, “Nino”, em noite inspiradíssima, Nino demonstrou superioridade incontestável, executando uma série de raspagens, passagens e montadas sobre Pedro. Depois de abrir um elástico 24×2, Shembri ainda conseguiu finalizar o atleta de Murilo Bustamante com um lindo arm-lock quando faltavam apenas 10 segundos para o final da luta. 

 

Fabio Gurgel (Alliance) x Saulo Ribeiro (Gracie Humaitá)

 

Na primeira vez em que se enfrentaram, no Mundial de 97, Saulo se deu melhor: aplicou uma bonita queda e acabou vencendo por 2×0. Desta vez, confiante que rasparia o adversário, Gurgel não quis saber e, pouco depois do início, puxou para a guarda. Só que Saulo foi mais rápido e fez logo uma vantagem de meia-guarda. Gurgel esperneou, esperneou, conseguiu repor, se ajeitou e, quando tudo levava a crer que conseguiria raspar e fazer 2×0, Saulo novamente se antecipou e conseguiu chegar novamente na meia-guarda, fazendo 2×0 em vantagens. Mesmo com apoio maciço do público, Gurgel não conseguiu reverter o resultado e teve que amargar uma nova derrota para o aluno de Royler Gracie. 

 

Vitor “Shaolin” Ribeiro (Nova União) x Márcio Feitosa (Gracie Barra)

 

Mal se iniciou o combate e Feitosa, consistente como sempre, fez uma vantagem ao ganhar a meia-guarda, fato que se repetiria por mais duas vezes ao longo do combate. Shaolin esperneava o quanto podia tentando raspar e por diversas vezes, incomodou Feitosa, que no final ainda conseguiu uma queda fechando o placar em 2×0.

Em um dos maiores clássicos entre Barra Gracie e Nova União, Marcio Feitosa venceu Shaolin por 2×0

 

João Roque (Nova União) x Fredson Alves (Gracie Humaitá)

 

Logo no começo da luta, Fredson puxou João para a guarda tentando raspar. Apesar da disposição, não conseguiu executar seu plano de luta à risca. João equilibrou-se bem, iniciou uma série de ataques à guarda de Fredson e, numa dessas oportunidades, conseguiu a vantagem de que precisava para ganhar este duro combate.

 

Roberto Traven (Alliance) x Daniel Simões (Gracie Barra)

 

Traven puxou para a guarda confiante no seu forte trabalho de pernas, só que, ao invés de tentar desequilibrar seu oponente e conseguir os dois pontos, parecia mais preocupado em defender os ataques do mesmo, que tampouco ameaçou passar sua guarda. Daniel acabou conseguindo uma vantagem, segurou o resultado o quanto pode e Traven, que deixou para correr atrás do prejuízo apenas no finalzinho, acabou saindo com a derrota.

 

Marcos “Parrumpinha” (Carlson Gracie) x Vinícius “Draculino” (Gracie Barra)

 

Luta muito disputada e semelhante a anterior (João e Fredson). Parrumpinha conseguiu manter-se por cima o tempo todo, atacando a forte guarda de seu adversário que, mostrando grande flexibilidade, conseguia sempre repor. Após alguns minutos, Parrumpinha acabou vendo seu ímpeto premiado com uma vantagem de desequilíbrio e venceu a luta. 

No clássico entre Barra e Carlson, Parrumpinha venceu Draculino por uma vantagem

Fredson Paixão (Oswaldo Alves) x David Camarillo (Ralph Gracie)

 

Franco favorito, o faixa roxa amazonense Fredson Paixão começou com tudo, dando mostras de que iria liquidar rápido a fatura quando pegou as costas do americano aluno de Ralph Gracie e começou a botar pressão no pescoço. David, por sua vez, surpreendeu e, com um acrobático movimento, saiu da posição difícil em que se encontrava, já caindo praticamente na lateral do manauara. A luta seguiu lá e cá e acabou sendo decidida pelo americano com uma bonita raspagem. 

 

Marcel Ferreira (Carlson Gracie) x Cláudio Moreno (Alliance)

 

No duelo de campeões mundiais na faixa marrom, Marcel começou bem e rapidamente abriu dois pontos de vantagem com uma bonita inversão. A partir daí passou a segurar o combate. Cláudio tentou correr atrás do prejuízo, fez cinco vantagens em cima do adversário mas não conseguiu virar: o atleta da Carlson manteve-se firme por cima e ganhou mesmo por 2×0.

 

Alexandre Frota (Rede Record) x André Segatti (Rede Globo)

 

A despeito da força e da divulgação que os dois atores estavam dando para melhorar a imagem do Jiu-Jitsu, os espectadores não perderam a chance e provocaram os dois chegando a ameaçar uma vaia. Até que o locutor do evento Mauricio Saddam entrou em cena, ressaltando a importância naquele momento de duas pessoas famosas defenderem o Jiu-Jitsu numa época em que a modalidade era execrada pela grande mídia e totalmente associada a violência. O discurso de Saddam levou o público a aplaudir os dois.  Na luta, André Segatti abriu o marcador com uma baiana. Frota não se abalou e mostrou que sabe Jiu-Jitsu: inverteu, botou joelho na barriga, montou, deu queda, montou novamente (14×2) e ainda finalizou seu adversário com um bonito arm-lock. Ao fim da luta, parecendo bastante cansado, foi comemorar com seu técnico “Carlão” Barreto. 

Segatti começou derrubando, mas Frota virou, fez 14×2 e finalizou com uma chave de braço

Renato Miragaia (Gracie Barra) x Daniel Christoph (Saporito)

 

Uma das melhores lutas da noite, marcada pelo Jiu-Jitsu solto e bonito mostrado pelos dois excelentes atletas da faixa marrom. O combate foi um show de inversões e raspagens. A partir da metade da luta Renato começou a dominar completamente o aluno de Saporito. Christoph não conseguiu evitar uma série de passagens aplicada com muito ajuste pelo atleta da Gracie Barra, que acabou vencendo por 13×6.

 

Pedro Brandão (Gracie Barra) x Daniel Moraes (Gracie late)

 

Na faixa roxa o campeão mundial juvenil Daniel Moraes começou a luta demonstrando maior ímpeto e por pouco não finaliza o campeão brasileiro Pedro Brandão com um estrangulamento, logo após abrir dois pontos de vantagem. A partir daí, Pedro conseguiu trazer a luta para o seu ritmo, empatou (2×2) e aos poucos foi abrindo as vantagens necessárias para a vitória final (6×3 nas vantagens).

 

“Leca” Vieira (Dojô) x Daniela Paiva (Alliance)

 

Leca e Daniela, duas precursoras da primeira geração do Jiu-Jitsu competitivo feminino, abriram o evento com uma luta muito técnica onde ambas mostraram grande variação de golpes. A faixa marrom da academia Dojo foi mais ofensiva e, apesar do resultado apertado (6×6 nos pontos e 5×3 nas vantagens), foi realmente superior durante todo o combate, no qual conseguiu impor seu jogo tanto por cima como por baixo e quase finalizou Daniela com uma chave de joelho reta.