Vencido pelo americano Dave Menne, este evento também ficou marcado pela total falta de organização, que aliás levou a uma união nunca vista entre americanos, brasileiros e canadenses contra uma panela russo-kuwaitiana, que só não foi levada adiante, graças a seriedade do juiz Big John Mcarty.
CADÊ AS PASSAGENS E A BALANÇA ?
A desorganização é algo que não choca a um repórter acostumado a cobrir eventos de Vale-Tudo no Brasil na década de 90. Nas minhas andanças pelo norte e nordeste já presenciei chuvas de cadeiras e latas, já vi um promotor salvar um torneio ao contratar um vendedor de coco na praia para lutar a 1 hora do evento, já vi evento sendo cancelado com a torcida já lotando um ginásio em Brasilia. Com toda esta “bagagem”, nunca imaginei que um evento no Kuwait patrocinado pelos petrodólares do milionário sheik local, pudesse me impressionar. Mas, para minha surpresa, a equipe do Sheik do Kuwait, Naif Jaber Al Sabah bateu todos os recordes no quesito desorganização.
Fã do UFC e Pride, o principe Naif decidiu fazer uma versão árabe dos maiores eventos do mundo motivado pelo sucesso mundial do ADCC, produzido desde 1998 pelo vizinho de Abu Dhabi, Sheik Tahnoon Bin Zayed.
Para atrair algum dos melhores do mundo na época, Naif ofereceu US 60 mil ao campeão do torneio (uma bolsa muito acima da média para a época). Dentre os convidados estavam os brasileiros Pelé Landy, Ricardo Libório; os americanos Matt Hughes e Dave Menne; o canadense Carlos Newton; o russo Barkalaev, o espanhol Derso Lerma e o Kuwaitiano Khaled Mubarak. Além de Amaury Bitetti que faria uma luta casada com outro atleta russo. Infelizmente Libório se contundiu a poucas semanas do evento e Pelé passou a ser o único brasileiro no torneio.
Convidado para cobrir o evento como representante das revistas Tatame, Cinturon Negro e Kakutougi Tsushin cheguei ao aeroporto para embarcar no mesmo vôo de Rudimar Fedrigo e Pelé. Mas nossos problemas já começaram no embarque quando descobrimos que o evento não havia nos enviado as passagens. De qualquer maneira decidimos acreditar no Sheik e bancar a passagem de nosso bolso para tentarmos o reembolso lá. Como só havia tickets promocionais (que cabiam em nosso cartão) para o dia seguinte, convidei Pelé e Rudimar a dormiram no meu estúdio em Copacabana para ficarmos perto do aeroporto. E assim fizemos
PESAGEM SEM BALANÇA
Chegamos ao Kuwait no dia da pesagem e descobrimos que a equipe americana composta por 13 pessoas também não havia recebido as passagens e teve que arcar com as despesas do próprio bolso. “Como compramos os tickets no dia pagamos US 5 mil . O cara ao meu lado, comprou com antecedência e pagou apenas US 800”, me contou Bruce Buffer que foi trazido pelo Sheik para anunciar o show.
Mas a revolta com a desorganização estava só começando. Assim que chegamos, já no café da manhã, Bebeo, Arthur Mariano e Tetel que tinham vindo com Bitetti, nos avisaram que o preferido do Sheik, o russo Barkalaev, estava pesando 92kg e não haveria balança. Os rumores foram confirmados na reunião minutos. Após Big John Mcarty conduzir a reunião, o organizador Wallid Al Merie agradeceu a todos e já ia finalizando, quando Pat Miletich (treinador de Matt Hughes) pediu a palavra e fez a pergunta que todos ali queriam saber: “Esta no contrato que os lutadores tem que pesar 85kg, onde está a balança ?”. A resposta impressionou. “Na verdade era para os lutadores pesarem 85kg na primeira luta, da segunda em diante poderia pesar 90kg. Bebeo Duarte não se conteve e soltou uma gargalhada, que revoltou o organizador cara de pau. “PLEASE RESPECT THE FIGTHERS”, disse Wallid, prontamente interrompido por Carlos Newton, que saiu em defesa do brasileiro. “Vocês que não estão nos respeitando, não se pode mudar a categoria no dia do evento. Eu não ganho 20 milhões como o Ronaldinho. Se me machucar amanhã, quem vai garantir meu ganha pão? Isso é um absurdo!”.
Diante de um possível motim Wallid cedeu as pressões e a balança finalmente apareceu. Conforme esperado Barkalaev, que já era conhecido dos brasileiros desde a polêmica briga com Ricardo Arona na semifinal do ADCC 2000, bateu 92kg. Mas como Pelé bateu 88kg, Hughes 87 e Newton 86kg, os lutadores acabaram chegando a um acordo com a organização. A exceção de Amaury Bitetti. “A luta do Amaury definiria o alternate do torneio até 85kg. Quando vi o tamanho do “russo polar” que saiu do elevador vi que aquele cara não bateria nunca a divisão e consegui convencer o Amaury a não lutar. Porque por ele, lutava”, relembra o córner de Bitetti.
Quando eu pensei que havia tomado todos os sustos possíveis, eis que me comunicam que eu seria um dos jurados do evento. Diante da minha risada, o mestrão Rudimar deu a resposta: “só se eu fotografar”. Diante da impossibilidade de eu cumprir as duas funções os organizadores convidaram a esposa de Big John Mcarty, Elaine para fazer companhia ao ex-campeão de Kickboxing Peter Cunningham e ao ator de Hollywood Richard Norton. Apesar de todos os tropeços todos preferiram dar um voto de confiança em nome do esporte. “O crescimento do MMA no Oriente médio será bom para todos nós”, lembrou o promotor e manager do WEF Mont Cox.
MENNE X NEWTON
David Menne abriu o torneio fazendo um lutaço com Carlos Newton. Já no primeiro minuto Menne tentou um chute no rosto do canadense que passou por baixo de suas pernas cinturando pelas costas e arremessando-o no chão.
O americano conseguiu escapar, mas foi derrubado em outras duas oportunidades por Newton que na primeira vez quase consegue definir com um armlock e na segunda chegou a montar. Mas no finalzinho Menne acertou um chute certeiro levando o canadense a knock down, que deveria garantir a prorrogação, mas os jurados apontaram Menne vencedor, revoltando Newton. “Se tivesse prorrogação eu o venceria, pois estava muito mais inteiro.Mas infelizmente os juízes são estrelas do cinema americano”.
PELÉ X HUGHES
Do outro lado da chave o favorito Kareem Barkalaev, que por ter dado aulas de sambo em Abu Dhabi era considerado ídolo local, escondia o jogo vencendo na decisão o franzino espanhol Derso Lerma, nitidamente se poupando para a semifinal contra o vencedor da luta mais aguardada da 1º fase: Pelé x Hughes.
O clima de rivalidade entre os dois já havia chegado aos ouvidos dos organizadores que colocaram ambos em andares diferentes. Inclusive, como estava no quarto com Pelé e Rudimar, ajudei um dos organizadores a traduzir um pedido do Sheik. “Por favor não deixe que nada ocorra entre brasileiros e americanos”. Mesmo assim os dois quase se pegaram num inesperado encontro no elevador.
Graças a Deus a luta só ocorreu mesmo no octagon. Hughes começou derrubando o brasileiro encurralando-o nas grades e imprimindo seu ground n´pound por quase três minutos. Mas quando a luta caminhava para uma confortável decisão unânime em favor do americano, Pelé explodiu, levantou e esperou a próxima tentativa de queda do wrestler para encaixar uma certeira joelhada na cabeça de Hughes, que já caiu nocauteado.
BARKALAEV VENCE PELÉ E DESAFIA ARONA
Na semifinal Menne venceu na decisão o russo Maromegob, que entrara descansado como alternate, uma vez que o espanhol Antonio Telo (que substituiu Libório), se machucou ao vencer a 1º luta. Menne trocou dez minutos de chumbo com o kickboxer e venceu na decisão, chegando bem machucado na final após lutar 20 minutos.
Na outra semifinal Pelé não teve mesma sorte contra Barkalaev, que já sabendo da fama do striker brasileiro logo o clinchou e aplicou um uchi-mata. A partir daí o russo dominou inteiramente o combate, passando a guarda do brasileiro, montando e passando a golpeá-lo duramente. Pelé deu as costas e tentou ficar de pé, mas a situação ficou ainda pior. Diante da chuva de socos, o brasileiro voltou de joelhos e, sem defesa, obrigou o juiz Big John a interromper o combate.
Ao final da luta perguntei a Barkalaev se ele gostaria de enfrentar o companheiro de Pelé Wanderlei Silva, que era de sua categoria de peso, mas o Daguistanês me surpreendeu com a resposta dizendo que não conhecia Wanderlei e tinha vindo ao evento pensando que faria sua tão sonhada luta com o brasileiro Ricardo Arona. “Por causa daquele tapa dele que revidei lá no ADCC tive uma experiência bem desagradável, fiquei uma semana preso com os olhos vendados, só me tiraram a venda para me colocar no avião e me deportar para o meu país. Gostaria muito de fazer uma revanche com o Arona nestas regras”, nos revelou o daguistanês tricampeão de Kickboxing, cujo grande sonho era conhecer o Brasil.
TODOS NA TORCIDA POR MENNE
Na grande final os promotores acabaram pagando por sua desorganização. Ao contrário do Sheik e seus súditos, que tinham Barkalaev como ídolo, todos os estrangeiros envolvidos na organização e arbitragem do evento estavam revoltados com a manipulação para ver o russo campeão.
Obviamente se cometesse um único equívoco o preferido do Sheik pagaria por isso, e foi o que ocorreu. Quando Menne subiu ao octagon lutadores e comissão técnica de todos os outros países passaram a torcer pelo americano com todas as forças.
O Americano começou melhor derrubando o russo, que se defendeu bem dos golpes e logo levantou tentando um perigoso leg-lock, bem defendido pelo americano.
Na sequencia Barkalaev passou sua guarda, montou e fuzilou, como fizera com Pelé.
Mas o americano conseguiu escapar e voltar de pe e depois de uma impressionante troca de golpes, derruba o russo e imprime seu ground´n Pound.
Mais uma vez Kareem surpreende, se recupera e levanta, derrubando Menne e montando no último minuto. Enquanto Barkalaev soca, Menne dá diversas barrigadas e o russo se apóia na grade. Big John o adverte, mas ele volta a incorrer no mesmo erro e acaba perdendo o ponto que definiria o ganhador dos US 60 mil. Quando termina o tempo o russo levanta comemorando e Big John lembra aos 3 árbitros que o russo tinha uma falta. Para revolta da torcida local, Menne era apontado vencedor por unanimidade. O promotor do evento Wallid ainda tentou argumentar com John Mcarty, que respondeu: “Vocês me trouxeram aqui para cumprir as regras, foi o que fiz”.
“Isto foi um absurdo. Um evento internacional não pode ter um árbitro e três juízes da mesma nacionalidade”, esbravejou um revoltado Barkalaev, ainda no octagon.
No final o guerreiro Menne recebeu o cheque e o cinturão das mãos do Sheik. “Nem eu imaginava que pudesse vencer um torneio com Hughes, Newton, Pelé e Barkalaev”. Mesmo com o rosto bastante machucado Menne cumpriu seu compromisso com o Rings duas semanas depois e, mesmo ainda longe de suas condições ideais, lutou 3 rounds com o bem mais pesado Kanehara no RINGS, mas acabou sendo nocauteado no 3º assalto.
Logo após o evento o Sheik organizou um jantar no restaurante mais suntuoso do país no alto de uma torre onde pediu desculpas a todos pela falte de organização, presenteando um a um, com uma adaga emoldurada.
ESQUECIDOS PELO SHEIK, MAS SALVOS PELA IRMANDADE MARCIAL
Como Rudimar, Pelé, Eu, Arthur Mariano e Amaury Bitetti havíamos comprado a passagem promocional que nos obrigava a ficar sete dias no Kuwait, acabamos ficando reféns da desorganização da equipe do Sheik, que além de não se mexer para trocar a passagem nos esqueceu no hotel assim que o evento acabou.
Durante três dias ficamos presos naquele país aguardando a boa vontade do secretário do Sheik. Nossa sorte foi que o judoca uruguaio Nélson Solari, que veio acompanhar Bitetti no evento, conhecia o local Muhamad Ali, que apesar do nome de boxer, era na verdade o maior campeão de Judô da história do Kuwait. Fã de Vale-Tudo e dono de um kartódromo próximo ao hotel, o simpático Ali, que já havia agregado na casa do uruguaio numa competição, retribuiu o apoio de Solari liberando para andarmos em seus karts durantes os 3 dias.
No final, mesmo tendo dois de seus carros nocauteados pelas barberagens de Bitetti e Pelé, Ali ainda nos ajudou a deixar o país. Como disse Rudimar. “Fomos esquecido pelo Sheik, mas salvos pela irmandade das artes marciais”.
Na realidade, enquanto Amaury e Arthur voltaram por Londres, Eu, Rudimar e Pelé saimos do Kuwait para Frankfurt. Na hora da conexão para o Brasil, porém, fomos informados no guichê da Varig que devido a categoria da passagem teríamos que pagar mais US 800 por cada bilhete. Como não houve “jeitinho”, para não ficarmos dois dias esperando na monótona cidade alemã, acabamos tomando a melhor e mais barata decisão. Alugamos um carro por US 180 e dirigimos para Paris, onde ficamos por 24hs, terminando esta roubada histórica em grande estilo.