Nos anos 80 e 90, tempos românticos do Jiu-Jitsu, onde as Federações ainda não tinham estrutura financeira para organizar um calendário anual de eventos, a Arte Suave vivia graças a copas como Company, Atlântico Sul, Lighting Bolt; e também a desafios de lutas casadas entre os principais ícones das maiores academias.
Quatro anos depois de organizar o desafio histórico entre Marcelo Behring (Gracie) e Cassio Cardoso (Carlson Gracie) no Roxy Roller da Lagoa, o principal promotor de eventos de Jiu-Jitsu da época, Ricielli Santos, decidiu aproveitar o surgimento da nova potência, Barra Gracie, e a rivalidade natural que vinha surgindo entre seu maior representante, Renzo Gracie, e Wallid Ismail, da Carlson, para promover um desafio de uma hora, entre os dois, no ginásio do Flamengo no dia 5 de agosto de 93. Colocando nas preliminares mais cinco lutas entre representantes de algumas das principais agremiações da época.
Texto e Fotos Marcelo Alonso. * Colaboraram Vinicius Draculino e Muzio de Angelis
A PRIMEIRA ENCARADA
Coincidentemente naquela época meu colega de Escola, João Paulo Big Head, conhecido faixa marrom da Barra Gracie, me reencontrou fotografando a Copa Atlântico Sul para o meu professor de Jiu-Jitsu, Claudio França, que promovia o evento junto com Joe Moreira e Marcus Di Lucia, e me apresentou ao Renzo Gracie. Ele gostou do material que eu já vinha produzindo desde 1991 e me convidou para fazer a foto do cartaz na semana seguinte, quando Wallid iria a Academia Espaço Vital, onde funcionava a Gracie Barra.
Combinamos a data e horário e lá fui eu com meu equipamento registrar a primeira encarada entre os dois. Wallid chegou sozinho e, apesar de toda tensão no ar, foi muito bem recebido. Fiz fotos em PB e cor da encarada e algumas opções, sem nenhum sentido, como o Carlinhos levantando o braço de ambos, que acabaram não sendo usadas. Na saída, quando Wallid ia embora, Big Head deu a ideia de fazermos uma foto do atleta da Carlson com Renzo e alguns membros da Barra, como ele, Roleta, Socka, Tinguinha.
WALLID, O MAIS NOVO ATLETA DA GRACIE BARRA
Hoje em dia seria algo extremamente natural, mas numa época onde representantes de agremiações rivais mal se falavam nas ruas do Rio, aquela ideia me pareceu não soar bem para o Wallid, que aceitou posar deixando claro em seu semblante que não estava a vontade na imagem. Nos dias subsequentes, revelei os negativos e ampliei as fotos no meu laboratório montado na sala de casa e entreguei ao Renzo e ao Big Head, que fez questão de comprar duas fotos da imagem onde o Wallid posava com os membros da Barra. Como ele estava na foto achei algo natural. Até que fiquei sabendo que o figuraço colou a foto num cartaz com os dizeres “O Mais novo membro da Gracie Barra” e colocou no mural do Bibi Leblon, que funcionava como uma espécie de Suiça do Jiu-Jitsu, ou seja, era uma zona neutra da cidade onde todas as agremiações se encontravam. A brincadeira na época revoltou Wallid que fez questão de ir ao Bibi rasgar o cartaz e acirrou ainda mais os ânimos para a disputa.
BARRA VENCE TRÊS PRELIMINARES
O ginásio do Flamengo ficou pequeno. Mais de 3500 pessoas lotaram o estabelecimento com bandeiras e gritos de guerra que já marcavam os eventos de Jiu-Jitsu naquela época. “Oh Paraíba pode esperar que a tua hora vai chegar !” . “Tá com medo trata de fugir, que o Carlson Gracie vem ai”. Eram alguns dos cânticos que a galera entoava para empurrar seus representantes em ritmo de festa.
Marcio Feitosa abriu a noite confirmando a fama de novo fenômeno da Barra ao aplicar uma queda, passar a guarda e finalizar o campeão da Copa Atlantico Sul Felipe Caçula com um estrangulamento. Na sequência o faixa roxa Rinaldo Santos garantiu a primeira vitória da Carlson, por combatividade, em luta muito disputada Eduardo Galvão da Barra.
Na faixa marrom, numa das lutas mais apimentadas pela rivalidade, Vinicius Draculino venceu Muzio de Angelis (Strike) na decisão unanime; enquanto seu parceiro de treinos, Alexandre Socka, finalizava com um estrangulamento Otavio Ratinho Couto. Na ultima luta, antes da principal, Leo Dalla (Jorge Pereira) venceu Anderson “SaRusso” Xavier (Master) por pontos
3 PASSAGENS DE GUARDA EM UMA HORA
Quando Renzo e Wallid entraram no tatame montado no ginásio do flamengo o clima era de fla flu. Para apimentar ainda mais Renzo e Wallid passaram alguns minutos se encarando no centro dojo até o mestre Álvaro Barreto dar início ao combate. Renzo começou melhor e atacando um crucifixo e quase pegando as costas de Wallid, mas o atleta da Carlson não deixou o Gracie colocar os ganchos e o emborcou, passando a guarda e fazendo os primeiros três pontos para delírio da torcida da Carlson. Renzo conseguiu repor em duas oportunidades, mas Wallid voltou a transpor sua guarda duas vezes fechando o placar em 9 x 0.
DECLARAÇÕES APÓS A LUTA
Renzo : “Wallid lutou só pelos pontos, não mostrou técnica nenhuma, enquanto eu dei um show de técnica, já que encaixei três estrangulamentos e uma chave de braço enquanto ele não conseguiu fazer nada. Não tenho desculpas por ter perdido. Perdi porque lutei mal taticamente não buscando pontos. Agora ele está querendo direcionar o desafio para o meu primo Rilion que tem 62 quilos, ou seja, 20 a menos que ele. Isso é uma atitude covarde. Eu quero deixar claro que o Wallid pra mim é uma carniça e quem vai comer essa carniça sou eu”.
Wallid: “Levando em conta que o Renzo disse que iria me finalizar, ele é muito bom de garganta. A luta foi até mais fácil do que eu esperava, ainda mais que foram roubados 8 pontos (de 4 joelhos na barriga completos), eu sei porque. O Pai do Renzo é o presidente da Federação, o vice, Carlinhos, é tio e professor do Renzo. O juiz deve ter se sentido totalmente coagido e apesar de tudo consegui ganhar com larga margem. Comparando com o futebol, foi como se eu tivesse vencido por 5x 0 com 4 gols anulados.
Wallid e Renzo nunca mais se enfrentaram, mas curiosamente, exatos 30 anos depois a rivalidade se mantém intacta.
O PROTÓTIPO DA TATAME
Três meses após este desafio, o Royce ganhou o primeiro UFC o que levou a um aquecimento do mercado marcial. Foi logo após a primeira vitória de Royce que o diretor da KIAI, Paulo Pinto, entrou em contato, me convidando a enviar “relatórios” e fotos mensais de todos os eventos de Artes Marciais que ocorressem no Rio. Foi assim que me transformei em correspondente da KIAI. Em poucos meses abri um estúdio, passei a fotografar anúncios e até capas para revistas e resolvi abandonar meu emprego como biólogo pra investir no prmissor mercado do jornalismo marcial. Exatamente um ano após o desafio entre Renzo e Wallid fui convidado por três jovens (Roberto Risada, Yan Bonder e Alexandre Esteves) para ceder imagens para um jornal do Jiu-Jitsu que seria chamado O Tatame, que inicialmente seria distribuído gratuitamente. Gostei tanto da ideia que aceitei ceder as fotos do desafio gratuitamente para que eles fizessem a boneca (protótipo) da Tatame. Escolheram uma foto da luta entre Léo Dalla e Anderson Sá Russo como capa. Mesmo só conseguindo um anunciante (Bibi Sucos), os três decidiram apostar na ideia e lançar a primeira edição com distribuição gratuita no primeiro campeonato brasileiro, organizado pelo CBJJ no Clube AKXE em 1994. O resto é história.