Depois de quase três anos sem vir ao Brasil, por conta da pandemia, finalmente o maior evento de MMA está de volta realizando no dia 21 de março sua 38ª edição em solo tupiniquim. Uma sorte que os fãs da era Pride (1997 e 2007) não tiveram, uma vez que o evento japonês nunca realizou uma edição por aqui.
Na realidade o show mais próximo do Pride que o fã de MMA nacional já conseguiu assistir ao vivo foi o Super Challenge organizado pelo empresário Paulo Vasconcellos (fã do Pride que trabalhava com exportação de carnes). Realizado no dia 7 de outubro de 2006 no ginásio José Corrêa em São Paulo o SC reuniu os oito melhores lutadores do Brasil em dois torneios, nas categorias até 73kg e 83kg. Além de dar um tratamento cinco estrelas para os lutadores nos bastidores pagando a melhor premiação já dada em um evento nacional, Paulo produziu um show com três telões (como o Pride), um ringue com as mesmas dimensões do Pride, além de um elevador que trouxe os lutadores para o ringue. A postura profissional do novo promotor chamou a atenção do Pride, que pela primeira vez enviou um representante oficial para atuar como árbitro em uma competição brasileira. Como esperado, os lutadores fizeram sua parte dando verdadeiro show com lutas emocionantes e grandes surpresas. Os grandes nomes da noite foram os faixa-pretas de Jiu-Jitsu Fabrício Morango (campeão da categoria até 73kg) e Demian Maia (até 83kg). Considerados azarões no card, os alunos de Royler Gracie (Morango) e representante da Brasa surpreenderam a todos ao ganhar o cinturão do Super Challenge e o prêmio de US$ 17 mil (15+2 por duas finalizações na primeira fase).
DEMIAN MAIA VENCE COM JIU-JITSU PURO
Considerado o maior azarão da categoria até 83kg, o campeão de Jiu-Jitsu Demian Maia (Brasa) foi com certeza a grande surpresa do evento. O que era bastante natural, afinal, mesmo com todos os títulos que já tinha no Jiu-Jitsu (em 2005 derrotou o Jacaré na final da Copa do Mundo), o atleta da Brasa, com apenas duas lutas de MMA na carreira (em pequenos eventos na Venezuela e na Europa), e com poucos treinos em pé, teria que enfrentar lutadores bem mais experientes como Alexandre Cacareco (BTT), Gustavo Ximú (GBCT) e Leonardo Chocolate (RFT), fazendo três lutas em uma noite.
Demian contrariou todas as previsões e mostrou que o Jiu-Jitsu puro ainda “podia salvar um lutador” no MMA. Na primeira luta contra o faixa-preta de Muay Thai Katel Kubis, aluno de Fábio Noguchi, Demian fintou com alguns chutes altos para finalmente encurtar, derrubar e pegar suas costas, de onde finalizou o curitibano no mata-leão.
Na sequência, Demian enfrentou um dos favoritos: o experiente Gustavo Ximú (GBCT), que já tinha 17 lutas de MMA, e havia eliminado outro casca-grossa, Leonardo Chocolate (RFT), numa guerra de 10 minutos. Chocolate havia dominado o primeiro round quando derrubou o atleta do GBCT, impondo seu jogo. Mas no segundo, Ximú foi melhor, bloqueando as tentativas de quedas, e contra-atacando com fortes chutes, que garantiram a vitória no final da luta. Na semifinal contra o Ximú, Demian não o derrubou no 1º round. Para evitar seus perigosos ataques de trocação, ele tentou puxá-lo para a guarda, mas não conseguiu, caindo no chão, fazendo guarda várias vezes. “Ele deveria ter levado, no mínimo, um cartão amarelo por fugir tantas vezes da luta”, reclamou Ximú após o combate. Depois de perder claramente o primeiro assalto, Demian continuou insistindo no clinch no segundo (e último), até cansar Ximú, derrubando-o, passando a guarda e terminando a luta montado, socando o discípulo de Marco Ruas, sob o olhar atento do juiz do Pride Oshiro Moritake, que interrompeu o combate assim que o gongo tocou. Para tristeza de Marcio Pé-de-Pano e Renato Babalu, Demian foi declarado vencedor.
Na final, Demian enfrentou pela 15ª vez Fábio Negão (ambos já haviam lutado 14 vezes em eventos de Jiu-Jitsu e Submission – Demian vencera 10). O atleta da Brasa enfrentou um Fábio muito cansado, que veio com a mão quebrada e o rosto marcado de 13 minutos de luta contra Felipe Mongo e 9 minutos contra Carlos Baruck. Muito mais inteiro (sem nenhum corte no rosto), Demian aproveitou a primeira tentativa de queda de Negão para aplicar uma guilhotina e finalizá-lo. Depois de comemorar muito com seus companheiros de treino da Brasa, Castello Branco, Rodrigo Comprido e Léo Vieira, Demian recebeu o cinturão do evento e, sem nenhum arranhão, disse emocionado: “Essa cara limpa é só por causa do Jiu-Jitsu, que é uma arte maravilhosa e que permite vencer sem me machucar nem machucar o adversário. Sei que tenho que melhorar muito meu jogo, principalmente em pé”, disse o campeão, que ganhou R$ 15 mil e mais R$ 2 mil, por ter finalizado duas lutas no primeiro round.
Antes de deixar o ringue, Demian se surpreendeu com o desafio de Jorge Macaco, vencedor da superluta que o desafiou para a próxima edição em 2007. “Quando era mais novo eu ia ao Ibirapuera ver você lutando MMA e para mim é uma honra lutar com você”, disse o educado e humilde lutador Demian Maia, que dali a alguns anos se consagraria mundialmente batendo o recorde de finalizações de seu ídolo Royce Gracie no UFC.
O veterano Milton Bahia (Fefel Team) fez a luta alternativa da categoria contra Flávio Álvaro (Macaco Gold Team). Não mostrando a mesma pressão dos tempos do IVC, o Bahia começou levando vantagem clara, mas se cansou no segundo round e acabou nocauteado, após sofrer um knock-down e levar alguns golpes da guarda.
MONGO SURPREENDE CACARECO
Algumas semanas antes do evento, Felipe Aguinelo Mongo – faixa-preta de Alexandre Pequeno – foi convidado a participar do evento. Estava feliz, até saber que enfrentaria o lutador favorito Cacareco na primeira luta. “Todo mundo falava que ele ia me matar, que eu era muito louco de aceitar aquilo”, lembra Felipe, que ganhou o apelido de “Mongo” na infância justamente por causa do seu jeito distraído. Para sorte do público, o lutador niterói acreditou no próprio potencial e não desistiu de lutar, tornando-se a grande revelação do evento. Começou o evento como maior azarão e acabou elogiado por Minotauro e Wanderlei. Mongo conseguiu o que poucos poderiam imaginar: derrubou Cacareco por três vezes, defendeu uma tentativa frustrada de chave de pé, defendeu uma chave de braço e ainda bloqueou a temida guilhotina de Cacareco.
“Todo mundo dizia que a guilhotina do Cacareco era tão boa quanto a do Pequeno, quando escapei percebi que poderia vencer essa luta e comecei a acreditar que poderia ser campeão”, lembra Mongo. Após passar por um momento difícil no início do segundo round, quando Cacareco o derrubou, Mongo mais uma vez derrubou o adversário finalizando a luta castigando-o da guarda, impressionando os juízes e garantindo a vitória por decisão unânime. Após eliminar o favorito, Felipe deu mais um show de garra na semifinal contra Fábio Negão. Mesmo perdendo a luta, o lutador carioca deixou o ringue consagrado pelo público que se levantou para aplaudi-lo.
O GUERREIRO FÁBIO NEGÃO
Outro grande nome da noite foi o faixa-preta da Lótus, Fábio Negão. Depois de mostrar seu talento no chão e em pé, derrotando Alex Gazé (KO), Mauro Xuxa (armlock) e Gabriel Gladiador (decisão) em outros eventos em São Paulo, Negão mostrou que, além das qualidades técnicas, tem muita coração e sorte. Esses foram dois fatores importantíssimos na primeira luta dele contra o Carlos Baruck. Com um Boxe de alto nível, fruto dos treinos com Belfort e um Wrestling inacreditável, fruto das aulas de Darrel Gohlar, Baruck vinha claramente vencendo no primeiro e no segundo round. Mas Negão não parou de atacar nem um segundo e a um minuto do final da luta, quando Baruck começava a mostrar cansaço, acertou uma joelhada que derrubou Baruck e obrigou o juiz Ebenezer Braga a interromper o combate.
Na semifinal contra Felipe Mongo, a raça de Fábio foi novamente definitiva. Após dois rounds disputados, onde ambos se alternaram no domínio da luta (Mongo foi melhor na trocação e Negão no chão), Fábio definiu o combate com socos da guarda, na única luta do evento que teve uma prorrogação (3º round). Mesmo com a mão quebrada, Fábio voltou aos ringues para enfrentar o Demian na final. Perdeu sim, mas foi elogiado como novo ídolo local pelo público do Ginásio.
MORANGO, O REI DOS LEVES
O faixa-preta de Royler Gracie, Fabrício Morango (Gracie Humaitá/ Tijuca), foi a maior surpresa do GP -73kg. Convidado para substituir Rodrigo Damm, que se machucou semanas antes do show, Morango era considerado azarão. Para vencer o GP, Morango finalizou Mauro Xuxa (Never Shake) rápido com uma guilhotina. “Tinha estudado o jogo do Xuxa e quando ele está por baixo, fica desesperado para se levantar. Na hora que ele atacou minha perna eu arrumei a guilhotina”, explicou. Na semifinal, o atleta da Gracie eliminou Luciano Azevedo (RFT), um dos favoritos ao título na decisão unanime dos juízes. Luciano havia derrotado Luis Beição (GBCT) na decisão do árbitro em luta dura.
JEAN SILVA NOCAUTEIA LÉO SANTOS E VENCE CLASSICO COM BTT
Durante a coletiva de imprensa, Chute Boxer Jean Silva havia prometido que iria nocautear seus adversários. “Levei uma surra na Chute Boxe no mês passado e agora alguém vai pagar por isso”. Jean cumpriu a promessa na primeira luta contra o faixa-preta de Jiu-Jitsu Leonardo Santos (Nova União). Em menos de um minuto, Jean acertou Leo com um soco certeiro de direita, que levou o lutador de Jiu-Jitsu às lonas. “Ele havia tentado aquele soco duas vezes e na terceira, quando ataquei um cruzado, ele desviou e me acertou. Quando levantei, vi ele comemorando e não acreditei”, disse Leo Santos, que fazia sua terceira luta de MMA.
Na semifinal Jean garantiu um clássico BTT x Chute Boxe Lutando contra Milton Vieira, da BTT. Miltinho havia finalizado Jhonny Eduardo na primeira luta com um mata-leão.
A rivalidade entre as duas maiores equipes de MMA daquele momento garantiu uma das melhores lutas da noite. Jean desferiu socos, joelhadas e chutes giratórios, enquanto Miltinho respondeu com socos e tentativas de quedas, em dois rounds. Jean provocou Vieira algumas vezes, quando usou um salto da capoeira para passar a guarda e aplicou alguns socos. Os melhores momentos de Miltinho foram no chão, quando tentou uma chave de braço, no primeiro round, e depois uma omoplata, no segundo. Ao final, os árbitros apontaram Jean como vencedor por decisão dividida. “Acho que não perdi. Quebrei o nariz dele com um soco, dei um arm-lock, uma omoplata e ele não me derrubou. Os árbitros deveriam marcar um round extra”, reclamou Miltinho ao final da luta.
A final do GP até 73kg, entre Fabrício Morango e Jean Silva acabou sendo mais um clássico entre Jiu-Jitsu e Muay Thai. Morango aplicou três quedas e tentou fazer um jogo solto no chão, tentando um triângulo seguido de uma chave de braço, após passar a guarda de Jean Silva com facilidade. Faltando um minuto pra terminar a luta Morango derrubou Jean com um ouchi-gari, passou a guarda e aplicou uma chave de braço perfeita, que obrigou Chute Boxe a bater. “Usei meu Jiu-Jitsu e acreditei que Deus estava ao meu lado nas minhas lutas. Vencer três lutas na mesma noite não é fácil, cara”, afirmou Morango, que até aquele momento havia feito 13 lutas de MMA e vencido nove delas.
MACACO NOCAUTEIA GODÓI
Há muito tempo um evento de MMA tentava colocar Jorge Patino Macaco (Chute Boxe) e Roberto Godoi (BTT) frente a frente. Os dois lutaram apenas no Desafio faixa-preta de Jiu-Jitsu, onde Macaco venceu na decisão após empatar com Godoi por 2×2. Então o Super Challenge resolveu fazer essa luta dentro das regras do MMA. Mais do que a rivalidade entre Chute Boxe e BTT, ambos tinham um problema desde a separação de seus times em 2001, quando cada um formou seu próprio time.
A maior experiência de Macaco nos ringues acabou sendo o diferencial deste combate. Com mais de 30 lutas de MMA na carreira, contra apenas sete de Godoi, Macaco dominou o combate do começo ao fim. Depois de aplicar um knock down no primeiro round, Jorge definiu a luta com socos da montada a 4min34s do 2º round por TKO. “Lutar é sempre difícil e o Godói é um lutador de Jiu-Jitsu experiente, mas mostrei a ele que o MMA é a minha terra. Mas devo dizer que ele foi um guerreiro” declarou Macaco, que dali a um mês (no dia 09 de novembro) faria outra super luta no MMA contra Fernando Margarida no Showfight.
VANESSA PORTO IMPARÁVEL
Vanessa Porto (Iglesias Team), que até hoje atua no Bellator, já começava a se destacar no cenário nacional em 2006 tendo dificuldades para encontrar adversárias na categoria até 60kg no Brasil. Curiosamente sua última derrota havia sido para Cris Cyborg (Chute Boxe). Na oportunidade ela foi derrotada pelo oponente 10kg mais pesada, mas fez uma das melhores lutas do Storm. Depois de derrotar Ana Maria (BTT) no Gold Fighters Championship, Vanessa só queria uma segunda chance com Carina Damm, que a derrotou em 2005. Como a organização não conseguiu trazer Damm, convidaram Juliana Aguiar. Apesar de treinar Jiu-Jitsu com Bruno Bastos, da Nova União, Juliana não segurou Vanessa, que a colocou no chão e ali, passou a guarda, montou e encaixou o kata-gatame que lhe deu a vitória. Ao final do evento, as 4 da madrugada, o promotor Paulo Vasconcellos prometeu a segunda edição para 2007, mesmo ano da última edição do Pride em Las Vegas. Coincidência ou não, infelizmente o Super Challenge nunca mais voltou a ser realizado, mas sem dúvida teve papel fundamental na carreira de diversos lutadores como Demian Maia, Fabricio Morango, Jean Silva, Léo Santos, Milton Vieira, Alexandre Cacareco e Vanessa Porto que não tardaram a conseguir espaço no mercado internacional.